sexta-feira, 12 de maio de 2023

Desafio de março/abril

 

Paz da praia



O metal quente do fecho da mochila preta, na cadeira da varanda, cuja janela era partilhada com o seu quarto. O contraste ferve na ponta dos seus dedos. Uma zona fria por, mais lentamente do que era suposto, ter arrumado a garrafa de água congelada na lancheira.

Os olhos verdes sensíveis à luz de meados de agosto procuram a voz que o seu ouvido tanto reconhece – “despacha-te” -, sua mãe. E passa por ela com a lancheira, descendo as escadas como se cada degrau se desintegrasse depois de ser pisado.

Não entende a sua pressa, a areia não vai a lado nenhum.

O pai espera no carro, trauteando o ritmo da música no volante. Com os seus óculos escuros e camisa e calções de linho, material fresco e leve, num verão de ar que se envolve nos pulmões. Os olhos de um tom verde, mais claro do que os dela, seguem a figura da mãe que se junta a ele com um jeito
que parece ficar mais relaxado quando ouve o som das chaves a trancarem o portão pintado de branco. Nos lugares da frente do carro, partilham o mesmo pensamento “Estava a ver que não era capaz de se despachar”.

Ela abre a porta e o couro do assento acomoda-se ao seu peso.
Afoga-se na imaginação e só vem ao de cima quando a sua visão periférica reconhece a familiaridade do seu redor. Mãe e filha saem, enquanto o pai vai estacionar o carro. É longe, não vale a pena irem todos.

Leva a sua mochila e um chapéu amarelo, aquele amarelo nostálgico capaz de confortar uma pessoa, e a mãe a lancheira e a sua mala. Desvia o seu olhar desta, que parece adiantar a sua passada, e vagueia nas várias cores da paisagem diante de si. As ondas fazem-se ouvir (tão calmas como a sua mãe antes da viagem), o rio cheio desfaz-se no mar percorrendo o lado direito da praia que parece protegida por enormes formações de rochas, destacando-se uma pela sua forma de barbatana de tubarão. As memórias invadem o seu pensamento e o seu peito aperta de saudades não conseguindo impedir os seus lábios de tomarem a forma de um sorriso. Ânsia reúne-se no fundo do seu estômago.

Ela acelera o passo, agora espera que a areia não fuja.

Chapéus cobrem a areia e o seu nome desvanecido trá-la de volta à realidade. Segue as marcas que a mulher mais velha deixa e monta o chapéu no lugar escolhido como suficientemente bom. Instalam-se e quando o pai chega junta-se à mãe para um passeio. Ela finge não gostar da ideia, mas estar sozinha a sentir o sol em todo o seu corpo é tudo que quer. Despe-se, estica-se na toalha e só tem perceção da areia a tomar forma das suas curvas, debaixo do fino material. Tenta-se a pegar um livro que trouxe, mas as suas pálpebras decidem contra e as conversas das outras pessoas reduzem gradualmente de volume. Deixa-se ir. Acorda, com a companhia dos seus pais e faz conversa de quem acabou de acordar (cujo conteúdo, por muito que tente, não se lembra). Levanta-se, empurrando a areia com as suas palmas, e arrasta as pernas onde o seu olfato deseja aproximar-se, sentido a areia a preencher todos os espaços e buracos que esta cria ao andar. O choque de temperatura invade todo o seu corpo, dos pés em contacto com as ondas, até às suas orelhas, uma mais vermelha devido à posição escolhida para a sesta. Agora, são as suas mãos que ficam molhadas e juntas fazem uma taça que carrega água salgada e
fresca de encontro à sua cara, permitindo que os sentidos fiquem mais aptos, deixando o estado de sonolência no passado.


Deixa-se absorver pela imagem onde se encontra, e pisca os olhos outra vez, como se fosse mentira. Os seus pés sentem a areia quando ela se afasta da água. Senta-se e parece que a mente fica calada, pela primeira vez, pelo menos parece a primeira vez. A cena que observa é ridícula, não faz sentido algo conter tanta beleza. As imperfeições da areia, os tons que variam, ficando mais escuros ao aumentar a sua proximidade com o mar; revolto e azul como sempre e misturando branco no final de cada uma das suas viagens à terra, criando espuma e voltando para trás, tomando uma certeza, repetição e consistência nestas caminhadas que só o mar tem. O céu, longe, está no plano do fundo, um azul-claro de mesma relevância que o da água, mas deixa as suas nuvens terem o papel principal pouco usual em vistas assim. Mesmo se quisesse era difícil competir com o molde destas, molde que cobre o céu como se fosse um plano pouco opaco que só deixa passar a presença do sol, atrás delas. Os seus tons de laranja no fundo acrescentam ao valor da paisagem que os olhos verdes tentam capturar. Num piscar de olhos, as nuvens e o mar parecem cruzar-se, estupendamente assemelhando-se a vizinhos.

Ela não consegue ouvir nada, agora não pode.

Sente a brisa acariciar o seu cabelo, desliga-se do mundo. Tem de capturar esta paisagem, partilhar este momento, seria egoísta guardá-lo para ela, mas não se atreve a mexer-se.
Receia que desapareça, que a areia escorregue debaixo de si, que o mar seque, que o sol pare de brilhar, que as nuvens se desfaçam, que chova. Não se move. Em vez disso, dá tudo de si, entrega-se à natureza, reconhece que esta paz é única.

Relembra a pressa da mãe e entende, finalmente.

Araz Neutrum


Matilde Antão Coelho, 11º B

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