Paz da praia
O
metal quente do fecho da mochila preta, na cadeira da varanda,
cuja janela era partilhada com o seu quarto. O contraste
ferve na ponta dos seus dedos. Uma zona fria por, mais
lentamente do que era suposto, ter arrumado a garrafa de
água congelada na lancheira.
Os olhos verdes sensíveis à luz de
meados de agosto procuram a voz que o seu ouvido tanto reconhece –
“despacha-te” -, sua
mãe. E passa por ela com a lancheira, descendo as escadas como
se cada degrau se desintegrasse depois de ser pisado.
Não entende a sua pressa, a areia não
vai a lado nenhum.
O pai espera no carro, trauteando o
ritmo da música no volante.
Com os seus óculos escuros e camisa e calções de linho,
material fresco e leve, num verão de ar que se envolve nos
pulmões. Os olhos de um tom verde, mais claro do que os dela,
seguem a figura da mãe que se junta a ele com um jeito
que
parece ficar mais relaxado quando ouve o som das chaves a
trancarem o portão pintado de branco. Nos lugares da frente do
carro, partilham o mesmo pensamento “Estava a ver que não era
capaz de se despachar”.
Ela abre a porta e o couro do assento
acomoda-se ao seu peso.
Afoga-se
na imaginação e só vem ao de cima quando a sua visão periférica
reconhece a familiaridade do seu redor. Mãe e filha
saem, enquanto o pai vai estacionar o carro. É longe, não
vale a pena irem todos.
Leva a sua mochila e um chapéu
amarelo, aquele amarelo nostálgico
capaz de confortar uma pessoa, e a mãe a lancheira e
a sua mala. Desvia o seu olhar desta, que parece adiantar a
sua passada, e vagueia nas várias cores da paisagem diante de
si. As ondas fazem-se ouvir (tão calmas como a sua mãe antes
da viagem), o rio cheio desfaz-se no mar percorrendo o
lado direito da praia que parece protegida por enormes formações
de rochas, destacando-se uma pela sua forma de barbatana
de tubarão. As memórias invadem o seu pensamento e
o seu peito aperta de saudades não conseguindo impedir os seus
lábios de tomarem a forma de um sorriso. Ânsia reúne-se no fundo do seu
estômago.
Ela acelera o passo, agora espera que
a areia não fuja.
Chapéus cobrem a areia e o seu nome
desvanecido trá-la de volta
à realidade. Segue as marcas que a mulher mais velha deixa
e monta o chapéu no lugar escolhido como suficientemente bom. Instalam-se e
quando o pai chega junta-se à mãe para um passeio. Ela finge não gostar da
ideia, mas estar sozinha a sentir o sol em todo o seu corpo é tudo que quer.
Despe-se, estica-se na toalha e só tem perceção da areia a tomar forma das suas
curvas, debaixo do fino material. Tenta-se a pegar um livro que trouxe, mas as
suas pálpebras decidem contra e as conversas das outras pessoas reduzem
gradualmente de volume. Deixa-se ir. Acorda, com a companhia dos seus pais e
faz conversa de quem acabou
de acordar (cujo conteúdo, por muito que tente, não se
lembra). Levanta-se, empurrando a areia com as suas palmas,
e arrasta as pernas onde o seu olfato deseja aproximar-se,
sentido a areia a preencher todos os espaços e
buracos que esta cria ao andar. O choque de temperatura invade
todo o seu corpo, dos pés em contacto com as ondas, até
às suas orelhas, uma mais vermelha devido à posição escolhida
para a sesta. Agora, são as suas mãos que ficam molhadas
e juntas fazem uma taça que carrega água salgada e
fresca
de encontro à sua cara, permitindo que os sentidos fiquem
mais aptos, deixando o estado de sonolência no passado.
Deixa-se
absorver pela imagem onde se encontra, e pisca os olhos
outra vez, como se fosse mentira. Os seus pés sentem a
areia quando ela se afasta da água. Senta-se e parece que a
mente fica calada, pela primeira vez, pelo menos parece a primeira
vez. A cena que observa é ridícula, não faz sentido algo
conter tanta beleza. As imperfeições da areia, os tons que
variam, ficando mais escuros ao aumentar a sua proximidade com o mar; revolto e
azul como sempre e misturando branco no final de cada uma das suas viagens à
terra, criando espuma e voltando para trás, tomando uma certeza, repetição e
consistência nestas caminhadas que só o mar tem. O céu, longe, está no plano do
fundo, um azul-claro de mesma relevância que o da água, mas deixa as suas
nuvens terem o papel principal pouco usual em vistas assim. Mesmo se quisesse
era difícil competir com o molde destas, molde que cobre o céu como se fosse um
plano pouco opaco que só deixa passar a presença do sol, atrás delas. Os seus
tons de laranja no fundo acrescentam ao valor da paisagem que os olhos
verdes tentam capturar. Num piscar de olhos, as nuvens e
o mar parecem cruzar-se, estupendamente assemelhando-se a vizinhos.
Ela
não consegue ouvir nada, agora não pode.
Sente a brisa acariciar o seu cabelo,
desliga-se do mundo. Tem
de capturar esta paisagem, partilhar este momento, seria egoísta
guardá-lo para ela, mas não se atreve a mexer-se.
Receia
que desapareça, que a areia escorregue debaixo de si, que
o mar seque, que o sol pare de brilhar, que as nuvens se desfaçam,
que chova. Não se move. Em vez disso, dá tudo de si,
entrega-se à natureza, reconhece que esta paz é única.
Relembra
a pressa da mãe e entende, finalmente.
Araz Neutrum
Matilde Antão Coelho, 11º B